Celebram-se hoje os 120 anos do nascimento de
José de Almada Negreiros, figura de destaque da vanguarda da arte portuguesa. A
sua obra, magnífica e única no panorama português, caracteriza-se pela exploração
de diversos níveis de expressão artística: das artes plásticas à
literatura, incluindo textos de intervenção, de humor e de crítica de arte e
adentrando-se também nos territórios da caricatura e do bailado.
«Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a
Humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa – salvar a
Humanidade.»
Almada Negreiros, A Invenção Do Dia
Claro (1921)
CANÇÃO DA SAUDADE
Se eu fosse cego amava toda a gente.
Não é por ti que dormes em meus braços que sinto
amor. Eu amo a minha irmã gémea que nasceu sem vida, e amo-a a fantaziá-la viva
na minha idade.
Tu, meu amor, que nome é o teu? Dize onde vives,
dize onde moras, dize se vives ou se já nasceste.
Eu amo aquela mão branca dependurada da amurada
da galé que partia em busca de outras galés perdidas em mares longíssimos.
Eu amo um sorriso que julgo ter visto em luz do
fim-do-dia por entre as gentes apressadas.
Eu amo aquelas mulheres formosas que
indiferentes passaram a meu lado e nunca mais os meus olhos pararam nelas.
Eu amo os cemitérios — as lagens são espessas
vidraças transparentes, e eu vejo deitadas em leitos floridos virgens nuas,
mulheres belas rindo-se para mim.
Eu amo a noite, porque na luz fugida as
silhuetas indecisas das mulheres são como as silhuetas indecisas das mulheres
que vivem em meus sonhos. Eu amo a Lua do lado que eu nunca vi.
Se eu fosse cego amava toda a gente.
Almada Negreiros, in Frisos - Revista Orpheu nº1